Nas trilhas da invernada – Rumo à cachoeirinha
Meu Pai Jair, como todos sabem, era lavrador. Homem simples,
honesto, trabalhava de sol a sol, plantando e colhendo os mantimentos
necessários ao sustento de sua recém-formada família. Como não possuía terras
próprias suficientes para o plantio de roças, meu Pai Jair e meu Tio Mervirio
plantavam roças a meia com o Tio Trindade, irmão de meu Avô Alcides, em um
local chamado de várzea. Recentemente passei lá em frente. Irreconhecível. Mato
fechado.
Pelos idos de 1960, não me lembro bem o ao certo, o Tio
Trindade ou Tio Mimino, como também era conhecido, veio a falecer. Após a sua
morte meu pai ouviu rumores de que os herdeiros não mais iriam permitir que o
meu Pai Jair e o Tio Mervirio, plantassem suas roças nas terras da Fazenda Boa
Vista, ainda que de meia. O que de fato aconteceu.
Digo pelos idos de 1960, porque essa é lembrança que me vem
à memória, de quando comecei a ouvir os assuntos relativos ao sítio das
Cachoeirinhas e da fazenda das Araras, propriedade o Sr. Candido Fonseca. Foi
também por essa época que comecei a ouvir falar de um tal de Garrincha e de um
tal de Botafogo, time de futebol de sucesso da época e de um tal de Pelé e de
um tal de Santos, outro time de futebol de sucesso da época.
Diante dos boatos que corriam à boca pequena, de que meu Pai
mais o meu Tio Mervirio não mais seriam aceitos como meeiros nas terras da
Fazenda Boa Vista, meu Pai se aproximou, creio que ainda mais, do Sr. Cândido
Fonseca. Dessa aproximação surgiu uma parceria que duraria alguns anos,
iniciando com o plantio de roças de milho e feijão nas terras do Sítio das
Cachoeirinhas, pertencente ao Sr. Cândido Fonseca.
Da parceria surgiu, por tabela, uma grande amizade, que
durou a vida toda, mesmo depois do meu pai ter mudado das invernadas e parado
com o plantio das roças. Foram anos de muito trabalho, mas de muita
prosperidade, como a colheita farta de milho e feijão, limpeza de pastos,
ordenha de vacas para a obtenção do leite e fabricação de queijos.
Aqui vale a pena abrir um parêntese. Sim. Este foi um
período marcante de minha infância. Com pouco mais de cinco anos já atravessava
as beiras de matas e de decidas íngremes das montanhas das invernadas e do
sítio das Cachoeirinhas para levar comida para o meu pai. Depois, para candiar
bois para arar a terra e prepara-la para o plantio. Mais tarde, depois das
sementes germinadas a limpeza e a retirada, com a enxada, das ervas daninhas.
Na época da segunda limpeza, o primeiro plantio de feijão
denominado feijão das águas já havia sido colhido e o milharal já estava com
suas espigas formadas. Época boa. Na hora do descanso colhias algumas espigas,
acendia um fogo e as assava nas suas brasas. Uma delícia que depois que saí da
roça não mais provei. A alguns anos adquiri um pequeno terreno onde sempre
plantei algumas covas de milho, mas não assei. Achei mais prático cozinhar, o
que é muito bom também.
E não foi só. Pela manhã, as vezes ainda escuro e com frio, ia
aos pastos para juntar e trazer as vacas para a ordenha. Em outras épocas do
ano, estava junto com meu pai no roçado para limpeza dos pastos.
Dizem que criança não deve trabalhar. Não é verdade. O que
não pode e nem deve é ser explorada. Eu, ainda menino fazia isso tudo e sobrava
tempo para estudar e brincar. Ah! Você não fazia arte? Fazia, e como!
As brincadeiras eram simples e com o que tinha disponível.
Pescaria de lambaris e carás era uma delas. Andar de cavalo. Correr e brincar
de pique eram as mais populares, entre muitas outras. E bola? Não tínhamos bola,
então quando aparecia uma era aquela farra. No mais era bola de meia ou fruta
da lobeira. Haja pé! Kkkkk
Mas voltando ao tema principal do relato. Se não me engano,
o nome Sítio das Cachoeirinhas, foi dado ao lugar, em razão de duas cachoeirinhas
existentes na propriedade. Herança da esposa do Sr. Cândido Fonseca, o pedaço
de terras encravado entre várias grotas cercadas de nascentes e matas, em que
pese algumas áreas acidentadas, possuíam muitas áreas de terras muito boas para
o plantio.
O acesso ao sitio das Cachoeirinhas, inicialmente era feito
pela trilha indo para a casa do meu avô margeando uma mata fechada, ainda hoje
existente, e depois tomava o rumo da divisa que corria em águas vertentes no
alto da montanha. A passagem não era oficial, mas foi permitida pelo Sr. Cândido
Fonseca, somente para o meu Pai e o Tio Mervirio, e claro, para as pessoas que iam
ajudar no plantio e na limpeza das roças.
O certo é que após passar a divisa das terras do avô, o
morro ficava muito íngreme e a trilha descia pela encosta em diagonal, para que
tanto a descida quanto a subida ficassem mais suave. Mas para nós meninos de
cinco, seis anos a gente subia e descia correndo, sem problemas e, às vezes, só
por brincadeira. Kkkkk. Tinha dois outros caminhos, mas o melhor e mais perto
era esse atalho passando pelas terras do meu avô Alcides e da descida em
diagonal.
Aliás essa trilha em diagonal do sítio das cachoeirinhas tem
estórias. A principal delas é que, certa vez eu estava indo levar a marmita da
tarde para meu pai. É que em certas épocas do ano que anoitecia mais tarde, meu
pai ficava na lida até mais tarde também, para aproveitar a luz do dia e
trabalhar um pouco mais.
Aí lá vai eu descendo a ladeira todo fagueiro, feliz e
cantando, alça do caldeirão com a comida de papai, na mão. De repente sem mais
nem menos a alça do caldeirão se solta e o caldeirão vai ao chão e inicia uma
descida morro abaixo, como uma pedra rolando. Sorte que a tampa do caldeirão
estava fixada com uma borracha e não se soltou, de modo que a comida não
derramou, apenas ficou misturada.
Recolhi o caldeirão e acabei de chegar até meu pai. Falei
para ele o que havia acontecido. Mas meu Pai Jair tinha visto toda a cena e me
acalmou. Mas fiquei apertado. Ufa!
Inicialmente a área preparada para o plantio situava numa
baixada e num aclive suave, no entorno da antiga casa sede do sítio das
Cachoeirinhas. Área muito boa para o plantio.
Feito as tratativas, papai e Tio Mervirio começaram a limpar
o terreno, para a aração e o plantio. Soube se à época que a mudança dos
plantios do papai e do Tio Mervirio da Boa Vista para o Sítio das Cachoeirinhas
do Sr. Cândido causou um certo ciúme.
Durante os preparativos do terreno – limpeza, aração – das
quais participei como candieiro de bois, a trabalheira foi pesada, mas
gratificante, como veremos adiante.
O certo é que após a preparação e da aração da área, foi
feito o plantio de milho e de feijão. E em alguns pontos uma plantação de
abóboras. O terreno era muito fértil e o milharal despontou com força,
prometendo farta colheita tanto de milho como de feijão.
Mas também emergiu a erva daninha, o mato. Com força. Tanto
que o primeiro ano foi trabalhoso. Precisou de muito trabalho para manter a
roça limpa. Mas a safra de milho, feijão e abobora foi generosa. O mesmo
aconteceu nos anos seguintes, até que para o descanso da área o plantio mudou
de local.
Fato pitoresco aconteceu nessa área do entorno da antiga
sede do sítio das Cachoeirinhas. Com menos de dez anos já ajudava meu pai na
lida da roça. Claro que com apenas nos limites de minhas forças de criança. No
meio do milharal foram salvas algumas árvores frutíferas, como laranja, mexerica
e tangerina e outras nativas como cedro, jacarandá, ingazeiro e uma outra
conhecida popularmente como maria-preta, cuja frutinha da casca preta é uma
delícia.
Por volta do meio dia o meu Pai e o Tio Mervirio davam uma
parada para um café, que eles levavam de casa. Quando chegava o horário, eles
iam para uma sombra e esquentavam o café, que nessas alturas estava mais que
gelado. Enquanto tomavam o café, às vezes acompanhado de uma broa, ou não eles
descansavam da lida fumando um cigarro de palha cada um.
Certo dia eu estava de folga da escolinha e fui com meu para
a roça. O sol estava queimando e disse para meu pai que iria para a sombra da
maria-preta descansar do sol. Então ele me recomendou que recolhesse um pouco
de lenha e gravetos que logo depois eles viriam para acender o fogo e esquentar
o café. Terminada a tarefa de recolher a lenha e os gravetos, resolvi pendurar
no galho da maria-preta e balançar. Na primeira balançada uma cobra se
desprendeu do galho e quase cai em cima de mim.
Com o susto saí correndo pelo milharal e chamando meu pai.
Não aconteceu nada demais, apenas o susto que foi grande.
Com a mudança do local de plantio para o meu Pai e o Tio
Mervirio, área que já estava toda limpa, boa e especial para o plantio, foi
ofertada para afilhado do Candido Fonseca. O Mateus. Porém, recém-casado, cheio
de paixão pela mulher, deixou a roça morrer no mato. Mas como o terreno é muito
bom, ainda conseguiu uma colheita maravilhosa de milho e feijão. Bem da verdade
manter uma roça de milho e feijão é para poucos. Lembro da luta de meu pai. Um
guerreiro.
Para a nova área de plantio meu Pai e o Tio Mervirio atravessaram
a abarrancada e o brejão para outra área de várzeas e de terrenos mais
íngremes, mas muito fértil. Lá retomamos todo o trabalho de limpeza e
preparação. Agora um pouco mais velho sete ou oito anos. Mas novamente,
ajudando na limpeza e preparação do terreno. E de novo candiando bois para a
aração do terreno. Ah! O paraná. Eita boizinho chato e fdp. Levei umas duas chifradas
dele. Muito bom para puxar o arado.
Na teoria, a sociedade do meu Pai Jair com o Tio Mervirio,
que vinha desde as meias com o tio Trindade, Tio Mimino, na plantação de roças
terminou aí. Não me lembro porque razão. Digo na teoria porque, apesar da separação
das áreas de cada um, plantadas em separado, os dois continuaram se ajudando.
Me lembro que em duas ocasiões que o Tio Mervirio se
acidentou. Primeiro com um estrepe de espinho da brejaúva que entrou em uma de
suas mãos e demorou alguns meses para sarar. Depois uma inflamação em um dos pés
que o deixou mais algum tempo fora de combate. Em ambas as ocasiões meu pai
ajudou meu Tio Merviro na limpeza das roças. Também houve a reciprocidade do
Tio quando meu pai precisou. Nesse novo local, não houve incidentes.
Passado algum tempo, não me lembro exatamente quando, o
plantio de milho e de feijão cessou nas terras do Sr. Candido Fonseca e meu Pai
e meu Tio Mervirio tomaram rumos diferentes.
Última lembrança que tenho de plantação do meu Pai nas
terras das Cachoeirinhas foi uma plantação de feijão em outra área da
propriedade. Dessa nova área o que tenho de lembrança é quantidade de cobras
encontrada.
A região escolhida para o plantio de feijão é uma área de
grota, com mato fechado, não uma floresta, mas de vegetação mediana e capim.
Creio que por ser uma área de grota, fresca e com muita sombra, aliado ao pouco
transito de animais as serpentes se instalaram por ali. O certo é que só no
primeiro dia de roçado eu e meu pai matamos umas seis cobras e no dia seguinte
também foram mais umas seis. Todas jararacuçus, cobras típicas da região e
muito perigosas.
Feito a limpeza, veio o plantio de feijão. A plantação de
feijão proporcionou uma bela colheita, finalizando a parceria do meu Pai Jair
com o Sr. Candido Fonseca. É que logo em seguida meu pai adquiriu uma venda e
mudamos para Torreões.
Meu Pai Jair não tinha muita paciência com comercio e acabou
não prosseguindo com a venda.
O sítio São Manuel das Invernadas, onde morávamos, ainda foi
mantido por mais algum tempo. Meu pai ainda retornou para lá mais algumas
vezes, fez plantação de milho e de feijão em uma pequena área, até que pelos
idos 1975 o sítio foi vendido. O mesmo aconteceu com a casa da venda de
Torreões. Então mudamos para Juiz de Fora. Primeiramente para uma casa alugada
no Bairro Mundo Novo e depois, em meados de 1978, para a casa que construímos no
Bairro Jardim de Alá.
A propriedade pertenceu à família até a morte de minha mãe,
após o que, adquiri as partes de minhas irmãs e é onde moro atualmente.
Até a próxima.
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