Nas trilhas da invernada - Memorias de 1968

 

Memória de 1968

O ano era 1967. Então com 12 anos eu já havia concluído a terceira série e parado com os estudos, por pura falta de turma da próxima série, que na época, era a quarta série. A escola mais próxima era no arraial de Torreões, cerca de 7,5 km da minha casa, que naquele ano formava uma turma da quarta série e se preparava para matricular uma nova turma para o ano seguinte. Eis aí a oportunidade de matrícula para o próximo ano. 1968.

Instigado pela minha madrinha Dulce Pinto que também era professora das séries anteriores, meu pai logo comprou a ideia e autorizou a minha matrícula na quarta séria para 1968. Meu tio se animou e também matriculou meu primo Sebastião Rezende.

O horário? Na parte da manhã de sete às onze. Meu primo, o Tião do Mervirio, morava um pouco mais longe, no gavião, uns 3 km depois lá de casa. Então, todos os dias à tardinha ele ia lá para minha casa, dormia e logo cedo, tipo cinco e meia, vinte para as seis já de uniforme, cafezinho no bucho, bornal no ombro, pé no chão, lá íamos nós encarar os cerca de 7,5 km para chegar às sete horas da manhã na sala de aula, a tempo de responder a chamada de presença.

Por volta de nove e meia da manhã, uma parada para o recreio. Hora de passar a merenda no bucho e em seguida uma rápida corrida atrás de uma bola no campo de Torreões. Era tudo muito rápido. Logo a sineta estava tocando e lá íamos nós de volta para a sala de aula retomar as lições.

Vale destacar que a sala onde funcionava a turma da quarta série fazia parte do casarão do Senhor Paiva. Isto porque o prédio da escolinha, Escolas Combinadas de Torreões, onde hoje funciona o posto de saúde e os correios não comportava mais uma turma. Mas era na cantina da escolinha que os alunos da quarta série merendavam.

A aula terminava por volta de onze e meia. Novamente, eu e meu primo, bornal no ombro, pé na estrada – ou seja, na trilha – lá íamos nós de volta para casa. Por volta de meio dia e meio lá estávamos nós prontos para o almoço.

À tarde era reservada para alguma tarefa que meu pai deixava para eu fazer e ainda tinha de sobrar tempo para os deveres de casa, passados pela Dona Renê Banhato, minha professora. Brincar! Só fins de semana e olhe lá.

Aqui, importante destacar que no período de 1966 a 1970 a escola São Manuel das Invernadas só tinha turma até a terceira série e estava funcionando a todo vapor. A professora era minha tia Silvana e minhas irmãs a frequentava e estudavam nela. Aliás eu também fui alfabetizado pela minha tia Silvana até a terceira série. A escola São Manuel das Invernadas funcionou até 1970, quando nós mudamos em definitivo para Torreões. Depois da nossa mudança a escolinha foi desmontada e transferida para as terras do Sr. Joaninho na segunda ponte do rio do Peixe. [1]

Assim foi durante todo o ano letivo de 1968.

O trajeto entre minha casa e Torreões era de caminhos e trilhas irregulares. Trechos de estradas, onde era possível passar com automóveis, outros apenas de cavalo ou a pé. Trechos que margeavam matas e brejos que em época de frio era possível se deparar com formações de geadas. Bem da verdade, ainda hoje são assim, só que hoje há trechos fechados e proibidos de passar, ainda que caminhando. Os demais estão bem melhores que os daquela época. Diga se de passagem uma época marcante da minha vida.

Penso que nenhum adolescente, principalmente da zona rural, esquece das agruras pelas quais passou. Quando escrevo essas passagens de minha adolescência, eu os faço para relembrá-las com nostalgia. Não que eu queira voltar ao passado. Não! Mas apenas para lembrar de que minha vida nem sempre foi de facilidades e moleza. Ao contrário, sempre foi de muito trabalho e superação.

Findado 1968 e terminado o ano letivo, pude ter a satisfação de ser aprovado com méritos. Ainda hoje olho para os meus diplomas com satisfação. O da quarta série então, olho com muito orgulho. Foi minha primeira superação.

Ainda sobre 1968 e durante a quarta série foram vários momentos interessantes. Porém, um deles foi deveras inesquecível. Todos os alunos daquela série, como não poderia ser diferente, eram oriundos da área rural. Uns menos outros mais, digamos, letrados que outros.

Não raro se ouvia na sala os alunos falando nois vai, nois foi e outras expressões coloquiais. Então a Dona Renê Banhato lançou a ideia das batatas. O que era: Primeiro ela pediu que todos os alunos trouxessem batatas doce. Claro, no dia seguinte encheu-se uma mesa no canto da sala com uma boa quantidade de batatas.

Foi aí que veio a explicação. Disse a professora. Olha, daqui para frente quem falar uma palavra errada, falar uma batata, terá de comprar uma batata. Me ferrei. Cansei de comprar batatas. Kkkk.

Outra passagem daquele ano foi a estória da maluquice do Semeão. Essa estória já contei em outro texto, mas vale à pena reproduzir aqui. Senão vejamos.

Não me lembro bem em que período do ano de 1968 que surgiu a notícia de que o Simeão, filho da Dona Maria Joana, parteira muito conhecida na região das invernadas, fundão, lagoas e jurema havia ficado doido e que estava descontrolado e atacando as pessoas.

Meu pai Jair, não está aqui para confirmar, mas disse que no trecho de Torreões ao Morro Grande ele, o Simeão, tentou embarcar no caminhão de leite, correndo e correndo atrás, porém não conseguiu embarcar, para o alívio dos ocupantes do caminhão.

À época, uma das opções para ir a Juiz de Fora era o caminhão que fazia a linha de leite Torreões a Juiz de Fora.

Pensem numa estória dessas. Trechos de estrada cheio de cavas, sem ter para onde correr. Ah! Está bom, mas pegar um menino de 13 anos na corrida, acostumado a correr atrás de vacas e cavalos nos pastos, sem chances.

Mas e o perigo! A gente pensava era encontra-lo em uma cava daquelas, como se diz lá na roça, de supetão e não ter para onde correr.

Para piorar, quando um dia nós chegamos a Torreões, pela manhã, lá estava o Simeão de pé, onde hoje é a pracinha de Torreões, de costa para o coreto e olhando para o céu. Não aceitou água e nada que o ofereceram.

Dizia que estava vendo outro mundo lá em cima.

Gente. Pensa em dois meninos morrendo de medo, mas que continuou a fazer o trecho. Com muito medo, mas com muita fé.

Enfim concluí a quarta série. Foi muito divertido.

Ano seguinte, 1969, foi uma nova etapa. Foi quando iniciou em Torreões as aulas no ginásio Don Justino José de Santana. Lá estava eu novamente saindo das invernadas, percorrendo cerca de 7,5 km e vindo a Torreões para frequentar as aulas do primeiro ano ginasial. Só que agora era diferente. Eu e meu primo saíamos à tarde para frequentar as aulas noturnas no colégio.

As aulas começavam às sete horas da noite e ia até às dez e meia. Logo, horário muito avançado não era possível retornar para casa. Noite fechada, trilhos e trilhas margeados com matas. Não que tivéssemos notícias de algum animal ou outro perigo, mas era sempre recomendável que não retornássemos àquela hora da noite.

Assim, eu e meu primo dormíamos na casa do meu Tio Geraldo, o Deocordo, este era o seu apelido. Logo de manhãzinha retornávamos para nossas casas, eu na invernada e meu primo no gavião, onde morava.

O ano de 1969 transcorreu sem nenhuma intercorrência. Ora vejam! Já não falo mais batatas. Kkkkk.

Findado 1969 e terminado o ano letivo e eu aprovado. Passei de ano.

Veio em fim 1970. Ano de copa do mundo. O Brasil seria tricampeão naquele ano.

Aliás 1970 marcou bastante a família. É que em meados daquele ano, ainda no primeiro semestre, meu pai adquiriu uma venda em Torreões, a venda do Geraldinho Esteves.

Um belo dia do primeiro semestre de 1970, que não sei precisar em qual mês, ao sair da aula me deparei com meu tio Geraldo Deocordo me esperando na porta do colégio. Ô Hélio! É o seguinte! Você vai ter que ir agora a noite para casa. O Geraldo Esteves colocou a venda à venda e eu disse para ele que o Compadre Jair tem interesse em ficar com o negócio.

Mas seu pai precisa estar precisa estar aqui amanhã cedo para acabar de fechar o negócio e assumir a venda.

Diante de tal situação eu e meu primo Sebastião do Mervirio arranjamos duas lanternas e partimos para a invernada de volta para casa no meio da noite. Chegamos em minha casa por volta de meia noite. Meus pais até se assustaram. Só se acalmaram após eu repassar-lhes a informação a respeito da venda. De madrugadinha meu pai partiu para Torreões, acabou de fechar o negócio e assumiu a venda. À tarde quando chegamos para aula do dia meu pai já estava proprietário da venda que fora do Geraldinho Esteves.

Aí não precisamos mais dormir na casa do Tio Geraldo Deocordo. Agora tínhamos nossa própria casa. E foi assim que aconteceu a nossa mudança das invernadas para Torreões.

 Com a mudança do sítio da invernada para Torreões, posso dizer que essa foi a primeira das decisões de meu pai que viria a transformar a minha vida e da minha família para sempre.

Toda mudança é sempre uma decisão de profundas mudanças e a mudança da família da invernada para Torreões não seria diferente. E de fato não foi.

Meu pai não tinha grandes pendores para o comércio, principalmente um comércio de varejo, misturado com boteco. Não demorou muito e ele foi se cansado da rotina de estar detrás de um balcão atendendo as pessoas. Tanto que, se não me falha a memória ficamos com a venda somente por cerca de três anos.

Nesse período outros eventos foram acontecendo. Mas não cabe mais nesse texto. Depois conto mais.

Até a próxima.



[1] A escolinha das Invernadas era feita de madeira e desmontável. Ainda hoje o imóvel se encontra no mesmo lugar para onde se mudou em 1870, porém não é mais uma escola. Fica ao lado do bar da estrada do Murilo do Joaninho.

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