Nas trilhas da invernada - Coisas da minha infância
Coisas da minha infância
Sempre tenho saudades da minha infância, não que ela tenha
sido excepcional. Digamos, de pé no chão, porém, na medida do possível saudável.
Foi uma infância simples, como qualquer infância de um
menino criado na roça, junto à natureza, fazendo coisas simples. Como brincar
de pique de correr, de esconder, de pique bandeira, de cavalo de pau, de subir
em arvores. De ajudar os pais, reunir as vacas para a tirada de leite pela manhã
e montar a pelo nos cavalos.
Bola! Só quando ia lá no meu avô, ou quando aparecia uma lá
em casa. Coisa que era muito raro e difícil.
Não poderia deixar de mencionar o ribeirão que passava aos
fundos do sítio, repleto de lambaris. Sempre um convite a uma bela pescaria.
Aliás, a região toda tinha fartos ribeirões, onde a gente podia pescar à
vontade. Inicialmente a gente usava um alfinete de cabeça dobrado em formato de
anzol, barbante torcido e encerado em uma varia de bambu. Minhoquinha como isca
e era aquela farra, uma fartura de lambaris. Depois era só limpar e mamãe fazia
aquela fritada de lambaris. Talvez o meu gosto por pescarias que cultivo até
hoje, tenha originado das brincadeiras daquela época menino.
Nossa casa, embora simples, era confortável para o lugar.
Não havia nada de excepcional. No início, na primeira versão as paredes eram de
adobes, sem forro e a cobertura era de sapê. Depois papai fez uma reforma,
mesclou tijolos queimados com tijolos de barro, mudou o sentido do oitão e a cobriu
com telhas francesas, um luxo para a época e lugar. Na verdade o único quarto
forrado era o de papai e mamãe, mesmo assim o forro era de esteira trançada com
taquaras. Os demais era só o telhado.
Quatro quartos, dos quais um deles era de hóspedes, quando
aparecia um. Outro que eu utilizava que eu o apelidava de quarto escuro. Mais o
quarto do casal utilizado por papai e mamãe. Tinha ainda o quarto de dentro –
para acessá-lo tinha que passar pelo quarto do casal –utilizado pela minha Tia
Silvana e minhas irmãs.
Acho que essa disposição era usual, talvez para proteger as
filhas. Digo isso, porque vi essa mesma configuração de cômodos na casa de meu
avô Alcides e em outras casas da região.
Tinha uma sala e uma salinha do meio que ligava os cômodos à
cozinha. Essa de chão batido que em épocas de frio servia para acender uma
fogueira e esquentar o ambiente, e claro, um fogão à lenha.
Os móveis eram compostos de camas de madeiras, bancos de
madeira na sala e na cozinha, duas mesas, uma na cozinha e a outra na salinha,
esta, com uma gaveta e chave, onde meu pai guardava suas anotações. Para guarda
das roupas minha mãe usava caixas de madeira com tampa. Tudo em madeira rústica.
Na cozinha, além do belo e rústico fogão à lenha havia um
caixotão, onde meu pai guardava os víveres; feijão, arroz, café em coco. Ainda
havia o pilão, para descascar o arroz e o café. O café, depois de descascado e
torrado numa panela de ferro voltava ao pilão para ser transformado em pó. Mais
tarde, não sei precisar a partir de quando, meu pai comprou uma torradeira e um
moedor de café. Aí a tarefa ficou um pouco mais fácil. Agora o café torrado era
moído na hora, o que dava mais gosto e sabor ao café. Aqui cabe uma observação:
até hoje sou fã incondicional de um cafezinho, seja de manhã, no meio da manhã
ou a tarde.
No local onde um dia funcionou a escolinha da Tia Silvana
meu pai instalou uma máquina de picar ração para o gado. Era uma estrutura de
ferro com uma roda manual, equipada com duas facas. O material a ser picado,
cana, capim guatemala, capim napier, engerca e outros. Os materiais eram
introduzidos por um cocho e puxados por engrenagens acopladas, que à medida que
a roda com as facas ia girando o material se aproximava para serem cortados. O
tamanho dos cortes era regulado de modo a tornar forragem para o gado. Único
problema! A força braçal que era necessária para girar a roda e picar a ração.
Ainda tinha a engenhoca de duas manivelas para moer cana que
ficava ao lado do rachador de lenha. Quando faltava o açúcar moía-se a cana
para tirar o caldo e fazer o café – café de garapa. Uma delícia! Tem gente que
não gosta. Mas a engenhoca servia também para retirar o caldo da cana e fazer
melado, rapadura, etc.
Aliás desde sempre eu adorei tomar um cafezinho, mesmo sem
acompanhamentos. Por falar em acompanhamentos, o top da época era a broa de
fubá de moinho d’água, feito em uma panela de ferro, com uma folha de lata com
brasa em cima, que era para assar por igual. Hummm! Que saudades. Às vezes,
bolinhos de chuva!!
A receita era bem simples. Se não me falta a memória era:
ovo, água, açúcar, bicarbonato e fubá. Quando tinha, adicionava-se um pouco de
farinha de trigo que era para dar mais liga. Os bolinhos também tinham uma
receita parecida.
Pela manhã, até mesmo uma batata doce assada no calor do
fogão à noite era muito, mas muito bem-vinda. Vida boa e saudável.
A casa, parte coberta de telha francesa e parte sapê, era
ladeada de plantações. Recentemente estive por lá em uma de nossas caminhadas e
pude observar que parte da casa ainda está lá, só que agora com uma pintura diferente.
Tive oportunidade de tirar até fotos. O sítio, claro esta todo mudado, mas muita
coisa ainda lembra o velho e bom sítio São Manuel das Invernadas.
Próximo à porta de entrada da sala havia um jardim, que eu
diria rústico, com flores silvestres. Hibiscus, rosas, íris e muitas outras. No
restante, havia laranjeiras, goiabeiras, mamoeiros bananeiras e cana. Parreira
de chuchu, inhames e taiobas. A horta, em si, era bem sortida com espécies de
couve, cebolinhas, alfaces, tomates e outras.
Não posso esquecer do pé de eucalipto já com uns 10 metros
de altura que eu fazia questão de escalá-lo até o alto. Um dia escapuli do
galho e cai de uma altura de uns 6 a 7 metros. Bem esperto, caí em pé e não
machuquei. Foi só um susto.
Aos fundos meu pai preparou um espaço onde ele plantava
milho, feijão, abóboras, mugangos e batatas, que eu reputo, fora de época. Mas
funcionava. Era uma área que pegava uns dez litros de milho.
Como se tratava de uma área úmida, o terreno era todo preparado
para o plantio do milho e feijão em fins de julho, início de agosto. Isto tudo
para que quando chegasse a época das chuvas, novembro e dezembro o feijão já
havia sido colhido e as espigas já estavam em processo de secagem nos pés.
O certo é que em janeiro nós já tínhamos milho suficiente para
aguardar a colheita das demais plantações de milho, que só iria ocorrer em fins
de abril, início de maio. Da mesma forma o feijão colhido nessa plantação fora
de época segurava até a nova colheita do feijão em janeiro e depois em maio.
Na área, como dito acima, junto com o milho e o feijão, meu
pai plantava, abóboras, morangas, mugangos e batatas. De forma que, feita as
colheitas, era a vez dos porcos serem soltos na área. Se esbaldavam. Depois de
uns dois meses era como se tivesse passado um arado em toda área, de tão
revirado que estava.
E os porcos! Crescidos e gordos. Alguns prontos para o
abate. Mais um pouco de ração e pronto.
Aliás, os capados, uma vez engordados, era hora do abate. Dia
especial no Sítio São Manoel das Invernadas. Uma semana antes do dia escolhido
para o abate do capado recolhia-se lenha para abastecer a fornalha, juntava se
palha de milho para sapecar o capado depois de morto. Enfim, tudo era planejado
para o dia do abate. Aliás, esse dia era especial. Só se trabalhava com a
preparação do toucinho, da carne, não se fazia mais nada. Todos se envolviam
nessa tarefa. Era, sem dúvida, um dia especial no sítio.
Na hora do abate do bicho a criançada que já estava acordada
tinha que sair de perto e ir para longe, isto porque se alguma das crianças sentisse
pena do animal ele demoraria a morrer. Pelo menos era assim que falavam.
Logo que abria a barriga do animal, a primeira coisa que eu
salvava era a bexiga do bicho. Enchia de ar, amarrava e pronto. Eis uma bola
para brincar até que ela estourava. No almoço já tinha bife de porco. No dia
seguinte já tinha torresmo, chouriço e outras delícias.
Não poderia deixar de destacar a área acima da casa, onde
meu pai deixou uma nesga de matinha fechada. Dali saia a água para o consumo da
casa, do bebedouro dos animais e de onde saia uma bela e límpida água. Pura, potável
e fresca por natureza, mas ainda assim passada no filtro de barro com velas. Ai
que sede!
Em frente, tínhamos um pequeno curral, com uma cobertura,
para o abrigo dos bezerros. É que, embora pequeno, o sítio comportava uma
pequena criação de animais. Chegamos a ter cinco vacas de leite; a natureza, a
gemada, a pratinha, a pimenta e a remonta, uma égua – a bainha – e um cavalo – o
brisola (kkkk), este, chato como ele só. Quando se sentia preso estirava para
traz, para se soltar. Numa dessas quase causa um acidente sério. É que uma de minhas
irmãs, a Aracy Virgalina que tinha uns 3 a 4 anos, o segurava pelo cabresto
enquanto papai colocava os arreios. De repente ele se jogou para traz de
surpresa, puxando minha irmã que caiu de boca no chão. Foi nada grave, só uns
pequenos arranhões. Mamãe curou com methiolate e ficou tudo bem. Kkkk
Tínhamos ainda, muitas galinhas e porcos.
Para ajudar na guarda da propriedade, quatro cachorros. A
primeira dupla; o trabuco e o maiado, bons de caça. Passou um tempo e eles
morreram, substituímos por outra dupla; o tareco e o brasile, também bons de
caça. As pronúncias dos nomes são estas mesmas. Kkkkk.
Embora pequeno e simples, o sitio poderia muito bem se
chamar “Meu Reino Encantado”, mas se chamava São Manuel das Invernadas.
Nele plantávamos quase de tudo: milho, feijão, arroz, café,
cana, laranjas, hortaliças diversas. Plantávamos também capim para o gado, que
juntamente com as canas serviam como complemento ao alimento das vacas nos
períodos de seca. Porém, para alguns produtos o espaço para a cultivá-los não
era suficiente, então plantávamos de meia com outros proprietários, como foi
com o saudoso Sr. Cândido Fonseca.
Produzíamos também frangos, ovos, leite, queijos e carne de
porco, para consumo. Ou seja, o sítio era quase autossuficiente.
A chegada principal do sitio, inicialmente se dava através
de uma trilha para cavalos e carro de bois, mas toda ecológica. A trilha
margeava uma área de brejo, tomada por arvores, como caneleiras, manacás,
cedros, entre outras, que na época da primavera explodiam em flores e odores
próprios da estação. Uma bênção! Nas demais divisas vários trechos de matas,
onde floresciam várias espécies, como tabocas, baraunas e muricis. Em outro
trecho o sítio confrontava com outro sítio. Aliás este sítio sempre esteve nos
planos de papai. Porém seus planos não se concretizaram com a mudança da
família para Torreões, em meados do ano de 1970.
Vale lembrar que a propriedade de São Manuel das Invernadas,
tinha uma vocação para escolinha. É que no início da década de 1960, minha tia
e primeira professora, iniciou a alfabetização de um grupo de crianças da
região. Se é que se pode chamar de escolinha uma mesa comprida improvisada, com
dois bancos compridos, um de cada lado da mesa, também improvisados. Mas foi
assim que iniciou a escolinha da Tia Silvana na invernada, onde, eu ainda com
cerca de cinco ou seis anos iniciei meu aprendizado, acompanhando os demais
alunos.
Depois, com recursos retirados na região e com a ajuda dos
pais dos alunos, foi construído uma outra escolinha ao lado de nossa casa,
cercada de esteira trançada com taquara, de chão batido e coberta de sapê, com
a mesma mesa e bancos, porém agora sim com um quadro negro, também improvisado.
Antes disso, a escolinha da Tia Silvana, não me lembro a
razão, foi transferida para a propriedade do Sr. João Cesana e funcionava em
uma queijeira desativada. Mesmo esquema da mesa e dos bancos. Aí eu e meus
primos tínhamos que nos deslocar por cerca de uns quatro a cinco quilômetros, a
pé, para frequentar as aulas. Depois, do mesmo jeito que foi, voltou, para a
invernada.
Nunca soube a razão de tal mudança. Nem procurei saber.
Passado um tempo apareceu por lá, não me lembro quem foi
primeiro, um tal de Fábio Neres e o Professor Murilo Hingel, este, se não me
falha a memória Secretário de Educação e Cultura da Prefeitura de Juiz de Fora.
Antes, porém, não sei precisar quando esteve por lá também um tal de Sr.
Mourão. Vendo a precariedade da escolinha, o Professor Murilo Hingel providenciou
carteiras para os alunos e, agora sim, um quadro negro, com giz, apagador e
tudo. Aí ficou parecido com uma escolinha de verdade.
As carteiras eram de madeira para dois alunos cada, com
local para a gente guardar o bornal com os cadernos e os livros durante a aula.
Não era tão confortável, mas era bem melhor que a mesa e os bancos. Antes, as
aulas eram ditadas pela professora e a gente transcrevia para os cadernos,
agora as matérias eram lançadas no quadro-negro e a gente copiava.
O bom do ditado é que ao aluno aprende a ouvir a pronúncia
das palavras. Era melhor para gravar e aprender.
Na primeira vez que estiveram lá, o Professor Murilo Hingel
e o Fabio Neres, foram de carro até a segunda ponte e de lá acabaram de chegar
de cavalo. Me lembro que fique responsável por abrir as porteiras e mantê-las
abertas para o pessoal passar. Depois como o trecho da estrada de Humaitá até a
segunda ponte foi arrumada, primeiro com um trator de esteira e depois com a
patrol, aí eles passaram a vir de carro, uma rural Willys da prefeitura. Se não
falha a memória o prefeito de Juiz de Fora, à época, já era o saudoso Itamar
Franco.
Não demorou muito tempo o Sr. Murilo Hingel, então
Secretário de Educação e Cultura de Juiz de Fora, conseguiu que fosse
construída uma escola de verdade lá no sítio São Manoel das Invernadas. Agora
sim toda em madeira, com janelas de vidros e coberta com telhas. Varandas em
volta! Uma cantina com banheiro e caixa de água, claro um pouco precária ainda,
porque para encher a caixa d’água era preciso acionar uma bomba - manual, haja
braço. Mas já era melhor que antes.
Papai atuou na construção da escolinha ajudando os pedreiros
e depois os pintores, ficando por conta desse serviço um bom tempo. Enquanto
isso cuidávamos das demais obrigações. A roça de milho e feijão, as vaquinhas
tudo ficou por minha conta e de minha mãe. Claro além da ajuda inestimável do
Tio Mervirio que nos ajudou muito nas capinas das roças nas Cachoeirinhas.
Depois de uns 3 anos papai adquiriu a venda do Sr. Geraldo
Esteves, o Geraldinho, e aí mudamos para Torreões. Apesar da propriedade ainda
pertencer a família, não tinha mais sentido a escolinha permanecer no Sítio São
Manoel das Invernadas. Em seguida a escolinha foi desmontada e reconstruída
próximo à segunda ponte nas terras do Sr. Joaninho. O que não mudou foi a
professora, minha Tia Silvana.
Por essa época minha tia já estava casada e morava em um
outro sítio a meio caminho da localização da nova escolinha.
O sítio São Manoel das Invernadas ainda permaneceu com a
família até 1975, quando foi vendido e o dinheiro utilizado para comprar o
terreno do bairro Jardim de Alá em Juiz de Fora, onde minha família vive até os
dias atuais.
Dizem que quem é da roça, jamais esquece. Tem até uma máxima
que diz assim: “Você sai da roça, mas a roça não sai de você. ” Acho a pura
verdade. Não me canso de relembrar momentos de minha infância e adolescência
vividas naquele lugar.
Ali vivi uns dos capítulos mais marcantes de minha vida.
Vida solta, bicho solto. Eu e a natureza. Ar livre, frutas silvestres, tudo
natural. Era sofrido? Sim, era. Mas julgo como um capítulo de minha vida, dos mais
importantes para a minha existência.
Tudo que veio depois e até o presente momento, sempre tem
lições aprendidas naquele período, que pode ser compreendido até meus 20 anos.
Sempre muito observador trago muitos aprendizados da época de menino pequeno no
Sítio São Manoel das Invernadas.
Até a próxima.
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